Vamos sair da Cidade Velha e de Belém também, com seus problemas, para falar de musica e do que elas podem nos transmitir. Prestar atenção nas mensagens que as musicas nos passam atraves do tempo é algo que está passando de moda pois, ultimamente... pouco dizem.
Temos lembranças, porém, deixadas pelas marchinhas de carnaval, de boleros chorosos, de sambas dolorosos, enfim, musicas que contavam problemas de vários tipos como os que a seca causava; a falta d'agua no Rio; questões das mulheres, dos negros, dos pobres, de amores, ciumes...De Noel Rosa, Cartola, Ismael Silva, Adoniram Barbosa para citar somente alguns dos que fizeram a historia da nossa musica. Isso, enquanto a bossa nova não chegava para falar de trivialidades quais: o pato, o sol, o mar, a barca e, obvio...da Garota de Ipanema.
Depois do samba de cozinha, de rua, de barzinho, do morro, nascia o samba de apartamento...
E chega A Banda. Era o periodo da ditadura.Várias novidades musicais passamos a tomar conhecimento, não mais somente pelo rádio, mas também atraves dos festivais transmitidos pela TV que nascia e se expandia. É ai que começamos a conhecer as musicas de Chico Buarque, mesmo se não era o unico que iniciava sua carreira naquele periodo. Com ele apareceram no cenario musical: Caetano Veloso; Edu Lobo; Gilberto Gil; Geraldo Vandré; Sergio Ricardo e outros.
A utilização de formas musicais populares para exprimir uma consciencia dos problemas sociais do país se torna mais frequente naquele movimento cultural que se desenrolava autonomamente. E intelectuais começam a fazer parceria com compositores populares, numa forma e modo novo. Aparece no cenario o samba do partido alto...e a evolução da MPB, avança, e com ela as criações de Chico.
O reconhecimento, por parte dos portugueses, da obra de Chico Buarque levanta o lençol que, ultimamente, cobria o que ele fez para abrir os olhos de todos... De todos os que prestavam atenção ao que esse nosso 'patrimônio histórico' escreveu sobre os problemas que tivemos ao longo de alguns decenios.
Recebi de alguem a nota abaixo e reproduzo por achar formidavel o levantamento de como sua obra pesou tano, e positivamente, na vida desse jornalista.
"GANHAMOS NÓS
Jornalista
português e editor do Diário de Notícias, Pedro Tadeu, homenageia lindamente
nosso Chico Buarque de Holanda nesse comovente texto abaixo.
Quando
recebi no telemóvel o alerta "Chico Buarque ganha o Prémio Camões"
senti-me no direito de comemorar uma vitória: "ganhei eu, caramba, ganhei
eu!".
Fui ler
a notícia. Os seis membros do júri explicavam a razão desta atribuição do
galardão literário pela "contribuição para a formação cultural de
diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa".
E o que
é que este português, de 55 anos, que escreve estas linhas, aprendeu com Chico
Buarque?
Aos
cinco anos de idade o meu corpo saltitava sempre que no rádio grande do meu pai
soava "A Banda", a música que, quando passava, diz o verso final do
refrão, ia "cantando coisas de amor". Chico Buarque impulsionou-me a
dança.
Aos 10
anos de idade percebi como um indivíduo sozinho nada pode contra o cerco
violento da indiferença. Bastou-me ouvir a história circular do operário de
"Construção", que "morreu na contramão atrapalhando o
sábado". Chico Buarque ensinou-me a identificar a injustiça social.
Aos 11
anos de idade percebi a inutilidade da divindade quando o coro masculino MPB4
repetia, em Partido Alto, "Diz que Deus dará/ Não vou duvidar, ô nega/E se
Deus não dá?/Como é que vai ficar, ô nega?". Chico Buarque deu-me razões
para ser ateu.
Aos 12
anos de idade intui, com os versos de Fado Tropical, como a brutalidade da
colonização sangrou a pele dos povos e como as cicatrizes prevalecentes demoram
séculos a fechar: "E o rio Amazonas/Que corre Trás-os-montes/E numa
pororoca/Desagua no Tejo/Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/Ainda vai
tornar-se um Império Colonial". Chico Buarque ofereceu-me uma identidade,
um medo e uma esperança na Lusofonia.
Aos 13
anos de idade percebi, pela letra do pseudónimo Julinho da Adelaide (um autor
inventado, usado para ludibriar a censura da ditadura brasileira, que até
falsas entrevistas deu aos jornais...), que confiar na polícia pode ser
perigoso, como constata "Acorda amor": "Tem gente já no vão de
escada/Fazendo confusão, que aflição/São os homens/E eu aqui parado de pijama/Eu
não gosto de passar vexame/Chame, chame, chame, chame o ladrão, chame o
ladrão". Com Chico Buarque descobri que, às vezes, está tudo certo se se
ficar do lado errado.
Aos 14
anos de idade conspirei o sentido da canção "O que será (à flor da pele):
"Será, que será?/O que não tem decência nem nunca terá/O que não tem
censura nem nunca terá/O que não faz sentido..." Chico Buarque revelou-me
o secreto significado da palavra "liberdade".
Aos 15
anos de idade compreendi, ao ouvir "Mulheres de Atenas", que a minha
mãe, a minha irmã e a minha namorada viviam num mundo pior do que o meu:
"Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas/Geram pro seus maridos os
novos filhos de Atenas/Elas não têm gosto ou vontade/Nem defeito nem
qualidade/Têm medo apenas". Chico Buarque justificou-me o feminismo.
Aos 16
anos de idade espantei-me com o atrevimento de "O Meu Amor". "Eu
sou sua menina, viu?/E ele é o meu rapaz/Meu corpo é testemunha/Do bem que ele
me faz". Chico Buarque fez-me entender como o sexo pode, ou não, fazer um
par com a palavra afeto.
Aos 17
anos comovi-me com "Geni", a prostituta que salva a cidade mas que a
cidade despreza: "Joga pedra na Geni!/Joga bosta na Geni!/Ela é feita pra
apanhar!/Ela é boa de cuspir!/Ela dá pra qualquer um/Maldita Geni!". Chico
Buarque confrontou-me com a dignidade dos indignos.
Aos 18
anos de idade a história de "O Malandro" exemplificou-me como é
sempre o mexilhão que se lixa: um tipo que foge de um tasco sem pagar a cachaça
que bebeu provoca uma crise mundial. Mas, no final das crises, há sempre um
bode expiatório: "O garçom vê/Um malandro/Sai gritando/Pega ladrão/E o
malandro/Autuado/É julgado e condenado culpado/Pela situação".
Chico
Buarque antecipou-me a globalização e fez de mim um comunista."
...e eu também.
Dulce Rosa de Bacelar Rocque
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