domingo, 4 de julho de 2021

ARTE, CULTURA E... CIVILIDADE


 

 No finzinho do século XX duas manifestações de massa começaram a engrandecer nosso patrimônio cultural: o Arraial da Pavulagem (1987) e o Auto do Círio (1993).

Ambos aconteciam na Praça do Carmo, já tombada pelo Município, e somente em 2012 pelo IPHAN. Tal tombamento não serviu, porém, para modificar o comportamento dos participantes de ambos os movimentos no uso da área tombada.

Através de conversas com os responsáveis pelo Arraial do Pavulagem, algumas providências começaram a ser tomadas, por ex: colocação de banheiros; limpar a praça após o evento; dispersão dos brincantes remanescentes as 22h; controle da intensidade dos decibéis.

Com o tempo, eles notaram os danos que tanta gente aglomerada numa área que necessita de particulares atenções, provocavam e quanto era difícil gerir... o fim da festa. A valorização que tentavam fazer da nossa cultura, parecia superficial e contraditória diante da negligência com a preservação do patrimônio histórico. Respeitar as leis após o espetáculo era extremamente difícil.

Por mais que tentassem, as normas estabelecidas no Código de Postura eram completamente ignoradas pelos brincantes. Perturbar o sossego dos moradores da área depois do evento, era uma regra difícil de eliminar... E a lei considera “atentatório a tranquilidade pública qualquer ato, individual ou de grupo, que perturbe o sossego da população.”

Civilmente, decidiram evitar a Cidade Velha. Reconheceram o valor das leis numa democracia reconhecendo assim, também, os  direitos dos cidadãos e optaram por  áreas abertas de maior dimensão.

Quanto ao Auto do Círio, o comportamento dos organizadores se mostrou muito diferente do Arraial do Pavulagem. Contato com a “comunidade através de suas organizações representativas” (LOMB/90 art. 108.II) não foi algo que alguem tenha levado em consideração. O desfile do Auto era precedido por ensaios, e um grupo começava a fazê-lo um mês antes, na praça do Carmo.  Os decibéis nesses ensaios começaram a aumentar ano a ano. As normas nacionais determinam de 50/55 decibéis, enquanto que nessas ocasiões se aproximavam dos 100 decibéis.  

Nos últimos anos, começamos a tentar falar sobre a poluição sonora com os organizadores do ensaio na Praça do Carmo, mas não houve amigável receptividade. Aliás, o comportamento era bem diferente daquele do pessoal do Arraial do Pavulagem. A indisponibilidade era evidente, chegando a níveis de prepotência. Depois, soubemos pela FUMBEL que tinham ordens para não criar problemas durante o evento e entendemos o porque de tal comportamento. De onde teria partido essa “ordem” de ignorar a defesa dos prédios históricos?

A arrumação do desfile começava antes das seis horas da tarde. Minha casa, sem nenhum problema, começou a servir a muitos brincantes, para se vestirem e se maquiarem. Os abusos, porém, aumentaram exageradamente, ao ponto de alguns brincantes virem se solidarizar com os moradores, frente o nível da poluição sonora. No ano seguinte, transferiram as vestições para o Fórum Landi...

Somente em 2018 conseguimos ter dois encontros com a UFPa, nos quais a poluição sonora foi um dos temas tratados. Decidiram então colocar caixas acústicas em todos os cantos (nos postes) da rua Dr. Assis, o que foi muito pior, pois mesmo depois de passado o cortejo o ruido ensurdecedor continuava. Na Praça da Sé, frente às duas igrejas tombadas chegaram a superar os 100 decibéis... E ainda prosseguiam até o IHGP. Terminavam o cortejo na via situada entre o MEP e o prédio da Prefeitura.

Tratava-se de respeitar as leis democráticas..., mas nada conseguimos. Nossos pedidos visavam a defesa do patrimônio..., e fomos ignorados. E o mau exemplo dado por um órgão educador, continuou.

Pessoas que falam sem conhecer a magnitude do problema argumentam que “é só uma vez por ano”, ignorando o fato de que ensaiavam pelo menos três vezes por semana, durante o mês que antecede o evento principal.  Além do mais, também falam sem conhecimento de causa das outras fontes de “ruídos excessivos” recorrentes no perímetro em questão:

- os fogos de artificio, muito ruidosos, às 23 horas, à saída das noivas após as cerimônias de casamento nas igrejas da área tombada;

- os trios elétricos que acompanham as lutas dos trabalhadores em frente a ALEPA e o MEP;

- as festas religiosas com bandas e fogos ruidosos por várias noites...

- além das festas de órgãos públicos em frente aos museus ali existentes.

O barulho nas vias públicas é outra fonte de irritação e incômodo que devemos agregar aos ruidos acima. A chamada poluição sonora causa, assim, mesmo que indiretamente, problemas como estresse, distúrbios no sono, doenças cardiovasculares, e até surdez, entre outros.

Imaginem a gravidade do incômodo, considerando que chegam a cerca de trezentos dias por ano os mencionados eventos, ainda mais se os acrescentarmos aos demais barulhos da cidade? Como defender o patrimônio sem tomar conhecimento dessa realidade? Todo esse excesso de ruidos causa problemas não somente ao patrimônio, mas aos anciãos que se encontram acamados em várias casas da área tombada. Causa sérios problemas para quem tem em casa alguém com síndromes várias. Ademais, prejudicam a saúde dos animais domésticos e da fauna urbana.

Dizem os especialistas que: “A partir dos 70 decibéis, existe um risco aumentado de contrair infecções e até de infarto”, em seres humanos e nos animais ditos irracionais. 

A poluição sonora é realmente um problema negligenciado, não somente por alguns gestores de universidades e igrejas, mas por muitas autoridades, também...

Que tal nos unirmos, inicialmente e civilmente, pensando também no bem-estar do próximo, mais do que no patrimônio, numa cruzada empática contra essa nossa... mal educação? 


Um comentário:

  1. Muito sensato o convite da CIVVIVA no fim do texto, que todos o aceitem para transformar a triste realidade da nossa Cidade Velha! Obrigado Dulce pelos alertas constantes e, infelizmente, recorrentes.Abraços

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