terça-feira, 28 de junho de 2016

Carta aberta ao Ministério da Cultura sobre a garantia de direitos e cultura alimentar


Considerando a conjuntura política e social do Brasil, vimos se multiplicar no país ações de exceção e tentativas de invisibilizar e negar o alcance de direitos conquistados democraticamente pela sociedade civil. Hoje, ameaçados não só pelos discursos fundamentalistas que tomam conta das ruas como também pela morosidade deste governo em garantir e implementar as políticas públicas construídas com a participação da sociedade civil organizada e representada legitimamente por povos indígenas, povos tradicionais, povos de matriz africana, povos imigrantes, povos de fronteiras, povos periféricos e demais grupos culturais;
Considerando que a cultura alimentar é vital para a humanidade; configura-se em um instrumento para a proteção do patrimônio imaterial e, idem, para salvaguardas de conhecimentos tradicionais e sobre o uso e manejo da biodiversidade; suas práticas impactam positivamente para conservação do meio ambiente; e, faz-se essencial para o desenvolvimento territorial local;
Manifestamos nossa insatisfação diante da execução das políticas públicas e garantia de direitos nos processos do Ministério da Cultura, o que abre possibilidades da perda desses direitos para ações como o Projeto de Lei 6.562/2013, que versa sobre a alteração da Lei 8.313/1991, Lei Rouanet para a inclusão da gastronomia brasileira como beneficiária de incentivo fiscal, prevendo apenas, conforme o Artigo 18 item i) eventos, pesquisas, publicações, criação e manutenção de acervos relativos à gastronomia brasileira.
A negligência do Ministério da Cultura em não implementar por completo as conquistas legítimas da III Conferência Nacional de Cultura acarretará em perda e retrocesso dos direitos culturais e ainda corrobora com uma redação excludente que ignora as matrizes culturais formadoras do povo brasileiro e contribui para a espetacularização e alienação do país sobre as culturas indígenas, de matriz africana, de fronteira, imigrantes, tradicionais e periféricas, uma vez que o Projeto de Lei 6.562/2013 versa sobre a gastronomia, sendo que conforme a etimologia da palavra Gastronomia é uma ciência, logo nem todas as práticas relativas a ela são práticas que justifiquem concebê-la como uma expressão cultural, como por exemplo os produtos gastronômicos dos fast foods, os transgênicos e as substâncias sintéticas, os quais são desprovidos das dimensões culturais, ancestralidades e ritos.
Reconhecendo que este PL é distanciado da participação dos movimentos culturais e sociais, pois esta mesma redação desconsidera intercâmbios, circulações e interações estéticas da cultura brasileira com suas matrizes e outras nações. E, que ainda esta mesma redação desconsidera as transmissões de tradições de modo não-formal, oralidades, cosmovisões, saberes, fazeres e falares, os processos de inovação, reprodução cultural, social e econômica gerados a partir de práticas tradicionais. O Artigo 18 item i) está a comtemplar apenas demandas apartadas da realidade da maioria da população brasileira, resultando assim em um Projeto de Lei para uma mínima parcela da população e que não promoverá satisfatoriamente o acesso de políticas públicas culturais nem para as populações mais vulneráveis, nem para os locais de piores índices de desenvolvimento social, nem nos locais mais remotos do Brasil. Ou seja, é mais um projeto elitista, excludente e antidemocrático que reforça o preconceito social e o racismo institucional brasileiro;
Recordando que a inclusão da cultura alimentar dentro das políticas culturais é, também, resultado da articulação e mediação do Colegiado Setorial de Patrimônio Imaterial, que desde agosto de 2013, encampou as demandas da sociedade civil e estabeleceu estreito diálogo com os movimentos e Ministério da Cultura. Com resultados positivos, entre os quais, além da implementação das moções, podemos citar a criação da Câmara Setorial de Cultura Alimentar, no Conselho Municipal de Políticas Culturais de Balneário Camboriú, em Santa Catarina;
Observando que é de maior gravidade desconsiderar que em novembro de 2013, foi aprovada durante III Conferência Nacional de Cultura moção a n° 094, a qual reivindicou o reconhecimento oficial da cultura alimentar como uma expressão cultural brasileira com a substituição do termo “gastronomia” por “cultura alimentar” fundamentado a partir da elaboração conjunta da diversidade dos povos brasileiros, legitimamente representada, com base em suas identidades e tradições, que compreende ser a cultura alimentar composta de um sistema multicultural híbrido de raízes indígenas, matrizes africanas e povos imigrantes; a qual conserva as línguas ancestrais do Brasil, conserva a arquitetura, design, utensílios, artes, estéticas, técnicas e tecnologias autóctones e tradicionais; está relacionada diretamente ao patrimônio imaterial, memória, ciências, identidade, ritos, cura, pertencimento territorial, processos de ocupação, entre outras práticas e manifestações culturais; e, suas interações estéticas, inovações e multidisciplinaridade, e, com todos os modos da ciência gastronômica quando relativa à cultura, assim como a culinária tradicional. De modo que se faça cumprir os protocolos internacionais de direitos dos povos indígenas e comunidades locais;
Considerando que esta mesma moção ainda reivindica a formação do Colegiado Setorial de Cultura Alimentar com representação no Conselho Nacional de Política Cultural, que sua gestão seja democrática e descentralizada para garantir fomento e políticas culturais respeitando as realidades locais assim como seus saberes, fazeres e falares; garantindo a soberania e segurança alimentar, marcos legais, propriedade intelectual, sustentabilidade, geração de riquezas, compartilhamento de benefícios, e o cumprimento dos protocolos internacionais dos quais o Brasil é signatário;
Considerando que, além desta, a moção 075, que reivindica a atuação Ministério da Cultura junto a Anvisa para articulação, discussão e aprovação de legislação específica que garanta a produção e comercialização dos produtos rurais artesanais e da agricultura familiar, idem apresentada e aprovada na III Conferência Nacional de Cultura, dezembro de 2013;
Considerando que foi o mesmo tema acrescido da deliberação para articulações e mediação interministerial do Ministério da Cultura com as políticas públicas de vigilância sanitária, regulação fundiária, educação, meio ambiente, tendo em vista a salvaguarda e sustentabilidade das práticas, saberes, fazeres dos produtos tradicionais referência do Patrimônio Cultural Imaterial consta na Carta de Princípios do Colegiado Setorial de Patrimônio Imaterial;
Considerando que na 22° Reunião do Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura/ MinC foi apresentada e aprovada a Moção Sobre Cultivo, Produção, Saberes, Fazeres e demais aspectos, relacionados à Cultura Alimentar Tradicional. Turismo cultural, Centros de formação profissional nos setores criativos. Regionalização das políticas e dos investimentos, com ênfase na região Amazônica;
Considerando que a cultura alimentar é temática nos pontos de cultura, redes, pontos de memória e outras teias de solidariedade, parcerias e interações tecidas tanto a nível nacional quanto internacional, no programa de cultura de base comunitária, Cultura Viva, com destacado sucesso culminando na Lei 13.018/14 que transformou o Programa Cultura Viva em política de Estado;
Considerando que em diálogo intersetorial, a cultura alimentar foi inclusa nas Metas de Aichi – ONU, metas nacionais 2010-2020, META XIII: “Instrumento de proteção e salvaguardas de conhecimentos tradicionais sobre uso e manejo da biodiversidade, incluindo a Cultura Alimentar.”;
Considerando que em janeiro de 2014, durante a Cúpula Mundial de Cultura Arte – IFACCA/ONU, o reconhecimento oficial da cultura alimentar e sua inclusão nas políticas culturais do Brasil foi considerada uma proposta inovadora para o desenvolvimento social e sustentável a partir da cultura;
Considerando que a cultura alimentar e sua inclusão nas políticas culturais brasileiras foi tema de discussão e articulação durante o 2º Congresso Latino-americano de Cultura Viva Comunitária, o qual contou com a participação de representação oficial dos Estados Iberoamericanos, ocorrido na Costa Rica, em 2014;
Considerando que, por sua relevância para o país, a luta pelo reconhecimento da cultura alimentar e alcance de direitos foi pela primeira vez tema de painel durante o Congresso Mundial de História Oral, apresentado para grandes ícones da historiografia mundial. Barcelona, 2014;
Considerando que a cultura alimentar foi temática de painel sobre memória e inovação durante o Fórum Nacional de Museus. Belém, 2014;
Considerando a abordagem temática e proposição de um setorial de cultura alimentar como garantia de direitos, soberania e segurança alimentar durante o II Encontro Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. Atualmente, em negociação para implementação pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, 2014;
Considerando a representativa participação e o compartilhar de experiências em mesas, painéis e palestras de expoentes da cultura brasileira que construíram as políticas públicas para a cultura alimentar junto ao Ministério da Cultura, no evento Terra Madre, de realização do movimento internacional Slow Food, em Torino, Itália, 2014;
Considerando a quantidade, capilaridade e relevância de projetos sobre cultura alimentar desenvolvidos a partir das políticas culturais desenvolvidas pelo Ministério da Cultura;
Reconhecemos que o Ministério da Cultura realizou a substituição do termo gastronomia por cultura alimentar e ainda inseriu a cultura alimentar no plano de trabalho do PRONAC – Programa Nacional de Apoio à Cultura 2014, por meio da Portaria nº 22. Sendo o segmento contemplado nas políticas de editais, fomento, economia criativa, intercâmbios internacionais e demais projetos.
No entanto, nossos direitos não foram garantidos, e a aprovação deste Projeto de Lei 6562/2013 descontruirá a luta vitoriosa dos movimentos culturais que além de tudo, compõe a política cultural mais relevante da América Latina, que por seus índices exitosos propagam o Brasil e reforçam alianças internacionais a nível mundial tanto para a cultura, meio ambiente, quanto para o desenvolvimento social e econômico, quanto pra os direitos humanos.
Diante de tudo, reivindicamos ao Ministério da Cultura:
A imediata aprovação e formação do Colegiado Setorial de Cultura Alimentar;
A imediata inclusão definitiva por meio de decreto lei em todas as políticas relativas ao Ministério da Cultura;
A imediata inclusão nominal de Mestres e Griôs da Cultura Alimentar, na política de reconhecimento de mestres e griôs.
O imediato posicionamento do Ministério da Cultura sobre as políticas deste ministério já contemplarem oficialmente a cultura alimentar em redação explícita desde dezembro de 2013, perante a campanha midiática para aprovação do Projeto de Lei 6.562/2013, a qual conclama o povo brasileiro a assinar pelo reconhecimento da gastronomia como cultura sendo que o resultado as assinaturas é a aprovação do projeto de lei que altera a Lei Rouanet.
Garantia de direitos já!
Lutar pela cultura alimentar é lutar pela vida!
Assinam esta carta:
REDE DE CULTURA ALIMENTAR
COMISSÃO NACIONAL DOS PONTOS DE CULTURA
PONTO DE CULTURA TAMBOR DE CRIOULA ARTE NOSSA
INSTITUTO PEABIRU
ASSOCIAÇÃO CIDADE VELHA CIDADE VIVA
COOPERATIVA ECOLÓGICA DAS MULHERES EXTRATIVISTAS DO MARAJÓ
INSTITUTO IACITATA AMAZÔNIA VIVA
ACADEMIA ALTAMIRENSE DE LETRAS
BANDA JOLLY JOKER

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