CONTINUAÇÃO DA SETENÇA RELATIVA AO PROCESSO 0831545-29.2021.8.14.0301 (TRAV. JOAQUIM TÁVORA)
2 – Fundamentos
A presente ação popular demanda uma análise aprofundada dos princípios do Direito
Administrativo, da proteção ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, bem como dos
direitos fundamentais à cidade e à fruição dos bens de uso comum do povo.
A controvérsia central reside na legalidade da instalação de um portão pela empresa Incogel na
Rua Joaquim Távora, no Município de Belém, e na omissão do poder público municipal em
garantir o livre acesso à via e ao rio, ao qual ela se articula.
2. 1. Preliminares
2.1.1 Ilegitimidade ativa e passiva e da adequação da via eleita
A preliminar de inadequação da via eleita, arguida pelo Município de Belém, não merece
acolhimento. A Ação Popular, prevista no Art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal, e
regulamentada pela Lei nº 4.717/65, tem como objetivo principal a defesa do patrimônio público,
da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural contra atos
lesivos. A interpretação de "ato lesivo" deve ser ampla, compreendendo tanto as condutas
comissivas quanto as omissivas do Poder Público ou de particulares.
No caso em tela, a conduta da Incogel de instalar e manter um portão que obstrui a Rua Joaquim Távora configura um ato comissivo lesivo ao patrimônio público e ao meio ambiente, pois impede
a livre circulação e o acesso à Baía do Guajará, um bem natural de uso comum do povo.
Paralelamente, a inércia do Município de Belém, ao longo dos anos, em remover tal obstrução e
garantir a fruição plena da via pública, caracteriza uma omissão lesiva à moralidade
administrativa e ao próprio patrimônio público que lhe compete zelar.
A restrição da ação popular apenas à anulação de atos, como pretendido pelo município,
esvaziaria o seu alcance protetivo em face de situações onde a lesão se manifesta pela inação ou
pela conduta contínua de particulares ou do próprio poder público. Portanto, a via eleita pelo autor
é perfeitamente adequada para a defesa do interesse público envolvido, buscando não apenas a
remoção de uma obstrução, mas a efetiva garantia de um direito coletivo à cidade e ao meio
ambiente.
A legitimidade ativa do autor, como cidadão eleitor (conforme documentos de ID 27777829), é
inquestionável para propor ação popular. Quanto à legitimidade passiva, a Incogel é parte
legítima por ser a responsável pela instalação e manutenção do portão, configurando o ato lesivo.
O Município de Belém, por sua vez, é parte legítima por sua omissão no dever de fiscalização,
proteção do patrimônio público e garantia do direito de ir e vir dos cidadãos, conforme
reiteradamente apontado pelo Ministério Público.
2.1.2. Prescrição
A preliminar de prescrição, arguida pela Incogel, também não prospera. Os bens públicos, por
sua natureza jurídica e pela sua essencialidade ao interesse coletivo, são imprescritíveis. Um
logradouro público, como a Rua Joaquim Távora, classificado como bem de uso comum do povo,
não está sujeito à usucapião, conforme o teor pacífico da Súmula 340 do Supremo Tribunal
Federal, que estabelece: "Desde a vigência do Código Civil, os bens dominicais, como os demais
bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião.". Embora a súmula mencione bens
dominicais, o entendimento se estende, com ainda maior razão, aos bens de uso comum do
povo, os quais são intrinsecamente afetados a uma finalidade pública e coletiva, sendo, portanto,
inalienáveis e imprescritíveis.
A ocupação de um bem público por particular, ainda que por longo período, como alegado pela
Incogel desde 1968, jamais convalida a situação de ilegalidade, tampouco gera qualquer direito
de posse oponível à Administração Pública ou à coletividade.
A possibilidade de reaver o bem público e cessar a lesão a a ele perpetrada é um direito que
acompanha a imprescritibilidade do próprio bem. O fato de ter havido uma judicialização anterior
em 1993, com extinção sem julgamento de mérito, como afirmado pela própria Incogel, não tem o
condão de legitimar a ocupação nem de fazer fluir prazo prescricional para a defesa do bem
público, uma vez que a questão de fundo – a ilegalidade da apropriação – nunca foi
definitivamente resolvida em juízo. A lesão ao patrimônio público é uma situação continuada, que se protrai no tempo enquanto a obstrução permanecer.
Ademais, a Lei nº 4.717/65, em seu Art. 21, estabelece o prazo prescricional de cinco anos para a
propositura da ação popular, contado da data da publicação oficial do ato lesivo. No presente
caso, a lesão não decorre de um ato formalmente publicado, mas de uma situação de fato de
ocupação irregular de um bem público, que se protrai no tempo e se renova diariamente,
mantendo a agressão ao interesse coletivo. Em tais circunstâncias, o prazo prescricional não se
inicia enquanto persistir a lesão. Portanto, rejeita-se a preliminar de prescrição.
2.1.3 Mérito da Pretensão
A controvérsia de mérito impõe a análise da natureza da Rua Joaquim Távora, da legalidade da
ocupação por particular e do impacto dessa ocupação nos direitos fundamentais da coletividade
ao meio ambiente e ao patrimônio histórico-cultural.
A Rua Joaquim Távora é, inequivocamente, um bem público de uso comum do povo, nos termos
do Art. 99, inciso I, do Código Civil. Logradouros públicos, como ruas, praças e vias, são bens de
domínio público destinados à livre circulação de pessoas e veículos, à qual se atribui uma
finalidade de uso geral e irrestrito pela coletividade. Sua utilização é livre para todos, e sua
destinação fundamental é servir ao interesse público.
O contexto histórico da cidade de Belém, conforme amplamente detalhado pelo Ministério Público
em sua manifestação, demonstra que as primeiras ruas da Cidade Velha, onde se insere a Rua
Joaquim Távora (originalmente conhecida como "Caminho do Atalaya"), foram traçadas e
desenvolvidas a partir do Rio Guamá/Baía do Guajará. Essa característica ribeirinha é intrínseca
à identidade de Belém, e as vias que se projetam até as margens dos rios e baías são
fundamentais para a vivência da cidade e sua relação com o ambiente natural e cultural.
Os mapas e levantamentos aerofotogramétricos da Companhia de Desenvolvimento Urbano de
Belém (CODEM) e da Secretaria Municipal de Urbanismo (SEURB), especialmente o
levantamento de 1978 e 2014 (IDs 75360324 e 104202372), confirmam o traçado original da Rua
Joaquim Távora com continuidade até a Baía do Guajará.
Embora o município, em sua petição de ID 104202387, tenha se limitado a juntar os documentos
sem maiores análises conclusivas, o próprio mapa da CODEM (ID 104202372) não apresenta "
indicativos de construção de portão na esquina" no levantamento de 2014, o que corrobora a
natureza pública da via em sua totalidade.
A imagem de satélite do Google Maps (ID 75360323), e as análises do Ministério Público (ID
109339045), reforçam visualmente a existência da continuidade da via além do ponto onde o
portão foi instalado.
Os depoimentos de moradores históricos, como a Sra. Dulce Rocque e a Profa. Maria de Belém
Menezes, coletados e citados pelo Ministério Público (ID 109339045), atestam que a Rua
Joaquim Távora, também conhecida em seu trecho final como "Beco do Cardoso", sempre foi um
local de livre acesso à beira do rio, utilizado pela comunidade para diversas atividades e como
ponto de conexão vital com a vida ribeirinha.
Essa memória coletiva é um componente inestimável do patrimônio imaterial da cidade,
diretamente afetado pela obstrução.
Diante de tal conjunto probatório e contextual, é indubitável que a Rua Joaquim Távora, em toda
a sua extensão, até as margens da Baía do Guajará, possui natureza de bem público de uso
comum do povo.
A Lei Ordinária Municipal nº 9.353, que dispõe expressamente sobre a instalação de portão,
cancela, correntes ou similares na entrada de vilas, ruas e/ou qualquer via denominada 'rua sem
saída’, estabelece em seu
"Art. 1º Fica permitida a instalação de portão, cancela, correntes ou similares na entrada de
vilas, ruas e/ou qualquer via que se articula em uma de suas extremidades e cujo traçado
original não tem continuidade com a malha viária da outra extremidade, denominadas “ruas
sem saída”."
A condição essencial para a permissão de instalação de portões, conforme a referida lei
municipal, é que a via seja caracterizada como "rua sem saída", ou seja, cujo traçado original não
tenha continuidade com a malha viária na outra extremidade.
No presente caso, a Rua Joaquim Távora, como demonstrado pelos elementos históricos e
cartográficos, termina no rio, não constituindo uma rua sem saída nos termos técnicos e legais da
Lei nº 9.353.
Uma rua que se articula com um rio tem continuidade por meio aquático, sendo uma
característica marcante da urbanização ribeirinha de Belém, e não se encerra em si mesma sem
conexão alguma.
Portanto, a colocação de um portão nesta via não se enquadra na exceção legal e,
consequentemente, é ilegal por ausência de autorização formal e por contrariar o disposto na
própria legislação municipal que regularia tais casos.
Ademais, a própria Incogel, em sua contestação (ID 37310477), menciona que foi "incomodada
pela PMB através da Secretaria Municipal de Urbanismo alegando que parte das instalações da
empresa acham se situada na 'projeção da Rua Joaquim Távora' impedindo o acesso do público"
e que foram expedidas notificações e até um "AUTO DE DEMOLIÇÃO" em 1997 para a retirada
do portão.
Embora a empresa alegue ter obtido uma medida cautelar judicial para vedar o procedimento
naquela época, a existência dessas ações por parte da prefeitura, ainda que frustradas no
passado, demonstra que o próprio ente municipal reconheceu a ilegalidade da obstrução, ao
menos em determinados períodos.
A atual postura do município, que tenta justificar a inação, não se coaduna com a defesa do
interesse público e com o histórico de intervenções fiscais sobre a área. A ausência de um
registro formal de autorização da Prefeitura de Belém para a colocação do portão pela ré Incogel,conforme expressamente delineado na instrução do usuário, é um fato incontroverso nos autos,
reforçando a ilegalidade da medida.
A Incogel fundamenta parte de sua defesa na condição de foreira da União em "terreno de
marinha" e na posse de autorizações de órgãos federais e estaduais para suas instalações.
Contudo, é fundamental distinguir o direito de aforamento sobre um terreno de marinha do direito
de obstruir uma via pública.
O aforamento confere ao particular o direito de uso precário sobre o bem da União, mediante o
pagamento de laudêmio e foro, mas não transfere a propriedade plena do imóvel, tampouco lhe confere prerrogativa de suprimir logradouros públicos adjacentes.
A autorização concedida pela SPU para ocupação de terreno de marinha pela Incogel diz respeito
à área concedida sob aforamento, não se estendendo, por óbvio, à via pública que, como bem de
uso comum do povo, tem destinação pública inalterável por ato de aforamento de terceiro.
A própria resposta da Delegacia do Patrimônio da União no Pará, citada pela Incogel em sua
contestação (Ofício nº 063/93 DPU PA – ID 37310477), menciona que "Não há projeto urbanístico
da Prefeitura Municipal de Belém na área, aqui registrado, em solicitação de cessão da DPU para
implantação qualquer de interesse público".
Essa informação, longe de beneficiar a Incogel, reforça a ausência de um plano urbanístico
municipal que justificasse a alteração da via e, implicitamente, a ilegalidade da obstrução.
Quanto à tese da aluvião, levantada pela Incogel e abordada pelo Ministério Público, ainda que
houvesse acréscimo de terras na margem do rio (seja por processo natural ou artificial), tal
fenômeno não alteraria a natureza pública da Rua Joaquim Távora. A via pública, como
"principal", mantém sua integridade e destinação até o curso d'água, e os acréscimos de terra se
incorporam ao domínio público daquela área, jamais ao particular que a ocupa, em respeito ao
princípio de que o acessório segue o principal e à vedação do enriquecimento sem causa em
detrimento do patrimônio público.
A legislação civil, em seu Art. 1.250, estabelece que os acréscimos formados ao longo das
margens das correntes pertencem aos donos dos terrenos marginais; contudo, quando a "terreno
marginal" é uma via pública, este acréscimo também se incorpora ao domínio público, em
benefício da coletividade.
A tentativa de apropriação de tal área pelo particular para fins privados, mesmo que com
investimento em aterramento, configura uma conduta abusiva e ilícita.
A apropriação de um logradouro público como a Rua Joaquim Távora, com a instalação de um
portão que impede o acesso à Baía do Guajará, representa uma grave violação a preceitos
constitucionais e legais que protegem o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.
O Art. 225 da Constituição Federal assegura a todos o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
O acesso a ambientes naturais, como a beira de um rio, é fundamental para o bem-estar, a saúde
mental e o lazer da população. A obstrução da Rua Joaquim Távora impede essa fruição,
privando os cidadãos de Belém do contato com a natureza e de uma vista deslumbrante que,
segundo os relatos históricos, sempre foi parte integrante da experiência urbana daquela região.
A dimensão ambiental da lesão é clara e direta.
Paralelamente, a Rua Joaquim Távora, como parte integrante do bairro mais antigo da cidade, a
Cidade Velha, possui um valor histórico e cultural inestimável. Ela é um testemunho da própria
gênese de Belém, uma cidade que nasceu e se desenvolveu em estreita relação com seus rios e
a baía. A memória coletiva dos moradores que brincavam, pescavam e contemplavam a
paisagem a partir dessa via pública constitui um patrimônio imaterial que é violentado pela
privatização do espaço.
O portão de aço, além de ser uma barreira física, simboliza a exclusão e o desrespeito a essa rica
herança histórica e cultural. A omissão do Município de Belém, ao longo dos anos, em agir de
forma eficaz para desobstruir a via, apesar de ter sido notificado e ter tentado agir em momentos
anteriores, configura uma falha grave em seu dever de proteger o patrimônio público, o meio
ambiente e a memória da cidade, conforme exigido pela Constituição Federal e pelas leis
urbanísticas.
A inação do poder público municipal, neste caso, não pode ser justificada sob o manto da
discricionariedade administrativa ou da reserva do possível, pois a proteção desses bens
transcende a mera conveniência e oportunidade, constituindo um dever fundamental e
inescusável.
A discricionariedade do administrador público deve pautar-se sempre pela legalidade e pelos
princípios que regem a Administração Pública, como a moralidade, a impessoalidade e a
eficiência, todos violados pela manutenção de uma situação de flagrante ilegalidade em
detrimento do interesse público.
Em síntese, a conduta da Incogel em obstruir a Rua Joaquim Távora e a omissão do Município
em garantir o livre acesso à Baía do Guajará são atos lesivos ao patrimônio público material e
imaterial, ao meio ambiente e ao direito fundamental à cidade, justificando a procedência da Ação Popular.
SEGUE