Para quem não sabe: em alguns municípios do Apenino tosco-emiliano, na Itália, existem monumentos aos Pracinhas, a FEB. São agradecimentos pelo que eles fizeram durante a Segunda Guerra Mundial.
Quando la morei, tive a oportunidade de conhecer essa realidade. Descobri quanto eram lembrados com gratidão, os brasileiros da FEB, os nossos 'pracinhas'. Visitei alguns dos lugares por onde eles passaram, em companhia de Arnoaldo Berti, o 'proprietário' de Monte Castelo.
Acho justo que vocês conheçam ao menos 4 pessoas que dedicaram suas vidas a não deixar seus con-cidadãos, italianos, esquecessem o que os brasileiros fizeram por eles.
Agradecemo o Sr. LUIZ ROBERTO MARIN PISSUTTI, autor do artigo abaixo, pela disponibilidade.
Dulce Rosa De Bacelar Rocque - Presidente Civviva
http://www.adiexitalia.org/37-editorial/64-os-quatro-cavaleiros
Os quatro cavaleiros
Tempos de guerra são tempos difíceis. Perdem-se princípios e valores. Esvaem-se resquícios de civilidade e morrem as mais primitivas crenças. A ética some e tudo passa a ser permitido.
Os efeitos do conflito mundial dentro da Itália podem ser encontrados em cada “comune” atingida. A Grande Guerra deixou sequelas no povo italiano. Porém, o horror e o desespero, aos poucos, foram cedendo lugar a histórias belíssimas, recheadas de conquistas heroicas, amores eternos, monumentos à memória e livros, dentre tantas outras maneiras que os habitantes da zona atingida encontraram para recordar a atuação dos aliados, especialmente dos “pracinhas brasileiros”, nos combates em que participaram.
Quase sete décadas após o término da Segunda Guerra Mundial existem na Itália pelo menos quatro homens que carregam nos ombros, como um modo de agradecimento, a responsabilidade de não deixar morrer a história gravada, indelevelmente, no tempo e no espaço, pela Força Expedicionária Brasileira.
Eles não são brasileiros, todavia são os atuais guardiões da História da FEB na Itália. Cada um deles com uma característica diversa. Todos os quatro com um desejo comum: manter viva a memória dos heróis que combateram entre o Apenino Tosco-Emiliano e o vale do Rio Pó, durante a Segunda Grande Guerra.
Eu os conheci muito bem, pois convivi com eles por mais de dois anos. Todos os quatro, com paixão, com delicadeza e com determinação, levam adiante os feitos dos combatentes brasileiros. Não deixam apagar da lembrança do povo italiano, particularmente da Toscana e da Emília Romanha, os inúmeros atos de heroísmo praticados.
Para ser mais exato, foi na cerimônia em homenagem à Tomada de Monte Castello, local de uma das mais árduas batalhas da FEB, que tive a oportunidade de aprender o quanto importante foram nossos “pracinhas” nos poucos meses que lutaram na Europa. Naquele dia cheguei à conclusão que a epopeia na Itália foi muito maior do que foi noticiada no Brasil.
Com o Monte Castello descortinado diante de meus olhos, num dia frio, de céu azul, mas cheio de neve, conheci os “quatro cavaleiros”: Fabio Gualandi, Giuliano Cappelli, Mario Pereira e Giovanni Sulla. Cada um deles com uma história a contar.
O primeiro “cavaleiro” chama-se Fabio Gualandi. Muito mais que contar a história, Fabio fez parte dela, pois naqueles anos de domínio nazifascista, também sentiu a dor e a indignação, como os que perderam pais, filhos, irmãos, parentes e amigos.
Fabio Gualandi tinha 14 anos de idade quando ajudava os soldados cozinheiros a preparar as refeições para os que combatiam em Gaggio Montano e em Montese. Assistiu cenas de guerra que não esqueceu nunca. Fez amizades inumeráveis. Ajudou e foi ajudado.
Quando conheci Fabio Gualandi, em fevereiro de 2006, ele portava um lábaro branco, com a insígnia da FEB, contendo a inscrição “MONTE CASTELLO – 21-2-1945”. Naquele momento tive a certeza de que aquele homem teria histórias incríveis a relatar. E passei a ouvi-lo.
Gualandi é um arquivo repleto de informações únicas. E suas vivências e belas histórias deram vida a um livro simples, mas cheio de significado: “Monumentos dedicados ao soldado brasileiro”, uma pequena mostra da sua eterna gratidão aos “pracinhas” da FEB. Seu testemunho enriquece, ainda mais, os feitos dos soldados brasileiros.
Encravada na Reserva Natural de Montefalcone, entre Santa Croce sull’Arno e Castelfranco di Sotto, Província de Pisa, uma rústica construção de pedra, que foi erguida pelos “pracinhas” da FEB, ficou durante quase 60 anos escondida debaixo de arbustos, árvores e ciprestes. A “capelinha dos soldados brasileiros”, como foi chamada pelos habitantes da região, destinada a celebrações religiosas, foi encontrada após um árduo trabalho de busca, do qual participou ativamente Giuliano Capelli, nosso segundo “cavaleiro”. É importante destacar que Cappelli é quem prepara, anualmente, a cerimônia junto à “Marginetta di Staffoli”, pararecordar os atos de fé praticados pelos nossos “pracinhas”. Durante a cerimônia ganha destaque a aposição da imagem de Nossa Senhora de Lourdes na pequena gruta de pedra.
Em 7 de junho de 2003 foi “reinaugurada” a “capelinha”. Na ocasião, uma família de Staffoli entregou uma placa que foi conservada durante mais de meio século, cuja inscrição relata: “O 11º Batalhão do Depósito de Pessoal da Força Expedicionária Brasileira, que neste local esteve acampado durante a Grande Guerra Mundial, aqui deixa este marco, inspirado nas tradições católicas do povo brasileiro, solenemente inaugurado no dia 2 de março de 1945”.
Capelli, destacando-se pela forma diligente com que sempre tratou os temas afeitos à FEB, tendo uma fotografia da pequena gruta, em 2008, deu à “Marginetta” a forma original. Graças ao seu trabalho, hoje pode-se admirar a beleza rústica da capelinha.
O terceiro “cavaleiro” chama-se Mario Pereira. E como falar de Mario sem falar no Subtenente Miguel Pereira, seu pai? Miguel, após a decisão do Governo Brasileiro de entrar na guerra, voluntariou-se para partir com a Força Expedicionária Brasileira. Um dia, questionado sobre a sua participação na Campanha da Itália, respondeu: “...Eu era militar, vivia do Exército, era Sargento e senti o dever, o dever moral de partir...”. Em 1946, Miguel Pereira foi encarregado de zelar pelo Cemitério Brasileiro de Pistóia, onde repousavam os heróis tombados em solo italiano.
Inicialmente, Miguel e um grupo de soldados brasileiros tomaram conta do Cemitério, sendo que a partir de 1948, até 1960, Miguel foi o guardião do Cemitério de Guerra, sozinho. Em 1960, os restos mortais dos “pracinhas” foram trasladados para a cidade do Rio de Janeiro.
Nos anos seguintes foi construído no mesmo local do velho cemitério o Monumento Votivo Militar Brasileiro de Pistóia. Miguel Pereira permaneceu à frente do Monumento até sua morte, em 3 de fevereiro de 2003. O legado de manter acesa a chama do Monumento Votivo Militar Brasileiro de Pistóia passou para as mãos de seu filho, Mario Pereira.
Mario realiza um trabalho exemplar. Dedicado ao extremo à causa febiana, destaca-se como um “embaixador” da FEB em terras italianas. Conhecedor profundo da história de nossos “pracinhas”, desenvolve atividades que repercutem tanto na Itália como no Brasil.
Como guardião do Monumento Votivo Militar Brasileiro, nas cerimônias evocativas, Mario Pereira conduz o “Gonfalone da FEB”, estandarte criado em 2006 como símbolo representativo da Força Expedicionária Brasileira na Itália. O estandarte foi condecorado com algumas das mais altas honrarias, dentre as quais destacam-se a Ordem do Rio Branco, a Ordem do Mérito Militar e a Ordem do Mérito Aeronáutico.
O quarto cavaleiro é Giovanni Sulla, de Montese. “Giovannino”, para os mais íntimos, tem orgulho de viver na cidade onde a FEB encontrou pela frente a sua mais sangrenta batalha. Em Montese pereceram, dentre outros bravos soldados, o Sargento Max Wolff Filho, o Aspirante Francisco Mega e o Tenente Ary Rauen. Giovanni Sulla, em seus discursos, faz questão de enfatizar que na sua terra a FEB foi heróica. Sempre que possível lembra a todos que o sangue derramado pelos soldados brasileiros em Montese serviu para libertar o seu país. Sulla sabe tudo sobre o contingente militar brasileiro que combateu na Itália. Desde a mais simples história, até o mais complexo funcionamento de um armamento utilizado durante a campanha. Conhece os pormenores das encostas dominadas pelos inimigos para a defesa, bem como as posições de ataque das tropas empregadas em Montese.
É capaz de discorrer sobre a FEB dias e dias, sem repetir uma história sequer. Foi o idealizador de diversos monumentos em homenagem à participação brasileira na Segunda Guerra Mundial. Todos eles distribuídos em uma área plena de histórias de guerra. Publicou livros e participou de documentários.
Giovanni Sulla ama o que faz. No seu modo simples de ser, atrai para si a atenção de todos quando conta as histórias de um tempo em que não viveu. Mas parece ter participado da guerra, tal a riqueza de detalhes com que emoldura as aventuras brasileiras nos Apeninos. Possui em seu museu particular peças raríssimas, todas elas adquiridas nas feiras militares pelo mundo afora. Dentre elas, duas chamaram a minha atenção: um guardanapo, com a assinatura de todos os oficiais integrantes do estado-maior da FEB, e uma maca, que foi utilizada para o transporte de um “pracinha” ferido em combate. O sangue do herói brasileiro ainda mancha a lona verde-oliva, após quase 70 anos.
Falar sobre a FEB com Giovanni Sulla é ver seus olhos brilharem e emocioná-lo. Relembrar algum “pracinha” já falecido é provocar as suas lágrimas. Sulla é um homem dócil e querido por todos por onde passa. Não há como não identificá-lo. Criou o “seu pelotão” próprio, o Grupo “Fratelli sulla Montagna”, onde ele veste-se de 1º tenente, com uma farda da FEB. O lema do “seu pelotão” é “A COBRA VA SEMPRE FUMANDO”, numa criativa maneira de dizer que a História da Força Expedicionária Brasileira não será esquecida pelos italianos da Toscana e da Emília Romanha.
Nas participações em cerimônias evocativas conheci outros tantos italianos e italianas não menos importantes como Francesco Berti, Giancarlo Macciantelli e sua inseparável Bandeira Brasileira, Lauro Biagini, Moreno Costa, Gino Costantini, Giovanni Zaccanti, Giuliana Pereira, esposa do Subtenente Miguel Pereira, e Maria Barbieri. Também conheci prefeitos e administradores locais, todos eles envolvidos na manutenção de um histórico rico de eventos. Vi inteiras comunidades, escolas e entes públicos e privados participando de cerimônias evocativas. Ao ouvir os relatos de todos eles compreendi a importância do soldado brasileiro para o sofrido povo italiano, na II Grande Guerra Mundial.
Aqueles militares da FEB que escalaram as montanhas geladas da Itália, cumprindo os seus deveres de soldados, não serão esquecidos. As suas jornadas heroicas ficarão registradas nas páginas de velhos livros e na lembrança de quem, ainda hoje, mantém viva a história dos feitos notáveis de uma geração que soube lutar por um nobre ideal: o ideal de liberdade.
LUIZ ROBERTO MARIN PISSUTTI – 1º Tenente QAO – foi Auxiliar do Adido do Exército junto à Embaixada do Brasil na Itália, no período de março de 2006 a Julho de 2008.
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